sábado, 26 agosto 2017 00:03

O Fogo e a Serra Destaque

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É minha intenção que a colaboração que mantenho neste blogue reflita o resultado de ir circulando por textos literários ou outros que de alguma maneira se relacionem com temas tratados na nossa actividade ou me pareçam relevantes e enquadrados nos objectivos do Circulo.

Hoje, um texto de António Alçada Baptista sobre o fogo e a serra que, apesar dos seus quarenta e um anos, continua actual quer no que revela sobre incapacidade de encontrar soluções para o problema e de as por em prática, quer nas consequências que a devastação provocada pelo fogo tem na vida das pessoas.

Vim para a serra da Estrela, a ver das minhas férias, precisamente na segunda-feira, 19, e, ao descer a encosta da Gardunha, vi aqui as chamas. Cheguei à Covilhã e tive de ficar na cidade: o fogo devorava a serra, esteve aqui, próximo desta casa, queimou seis casas vizinhas e não estava ainda controlado. Só no dia seguinte pude subir: a serra é agora uma encosta negra do fumo e das cinzas.

Creio que as pessoas que, nas cidades, sabem pelos jornais das catástrofes, não se dão conta da dimensão e do significado delas em relação a uma vida humana e como podem atingir o âmago de uma existência. É que as vidas, antes de serem levadas para a necrose da cidade, são pedaços de tempo curtidos com espaços de natureza com quem as pessoas criam a intimidade de uma relação de família.

Eu sei: os que escrevem acabam por querer reduzir tudo a literatura – o que não sei se é um bem se é um mal - , mas a verdade é que sinto que, em termos visceralmente existenciais, tenho uma relação visível com um espaço do mundo e que esse espaço é aqui, na serra, mais propriamente nesta meia encosta, a que chamam o Doutor António, porque o meu avô se chamava assim e foi aqui que lhe deu para plantar árvores e levantar muros quase a despropósito. Estas pedras e estas árvores foram a geografia da minha infância, a fauna e a flora que primeiro me nomearam: víbora, alacrária, coelho, raposa, lobo, perdiz, gafanhoto, gralha, águia e mais giesta, tojo, piorno, melezes, freixo, pinhal.

As casas ardidas dos meus vizinhos foram, em tempos, casas de meninos que tinham o meu tamanho, com quem vivi nas férias quando as férias eram um pouco de tempo ainda mais parado, no imenso tempo parado que era todo o tempo de então, eram coisas que tinham a ver com passeios e banhos na ribeira, e, à noite, na força das luas de Julho e Agosto, passeavam as sete ou oito famílias, depois de jantar, pela estrada estreita e empedrada, contavam histórias inocentes, tratavam-se por Senhor e Minha Senhora ou Senhora Dona. Havia, às vezes, comezainas faladas de panela de forno ou sardinhada. Outras vezes batiam-se biscas e suecas pacatas pelo serão a dentro.

Vejo hoje que essa existência era qualquer coisa de vivido em contraponto constante com a natureza, desde a neve de Inverno ao sol do Verão: eram os elementos do mundo a entrar na minha vida e a deixar as suas marcas: a angústia que vinha com as nuvens negras, do lado da travessia e com a chuva batida pelo vento; era a alegria que vinha com o calor das férias e mais com os pequenos êxtases respirados na leve brisa das manhãs, que trazia o cheiro da caruma e das giestas e mais o barulho das aves e dos rebanhos que subiam a encosta.

Foi parte de tudo isto que me ardeu, naquele dia em que cheguei aqui. Sei que já não vou ver aquele bocado da serra outra vez com árvores. Naturalmente, neste tempo de crise,os donos das casas não reconstruirão as casas: tudo vai passar à categoria de ruína que é um nome que é metade morte e metade melancolia.

Consta que foi fogo posto. «Mãos criminosas» - como dizem os jornais- atearam o lume em quatro pontos e, em duas horas, a serra tinha ardido perante a quase impotência duma solidariedade vibrante de bombeiros, soldados e povo das aldeias. Os criminosos, quando aparecem, são quase sempre dementes e deixam, por isso, de ser criminosos. Talvez essa demência seja o símbolo indisfarçado dum tipo de civilização que vive em destruição permanente e consentida daquilo que a natureza, teimosamente nos vai dando.

Fica-me a imagem dos bombeiros voluntários e dos seus capacetes amarelos, a entrarem no fogo , indiferentes à fadiga e ao perigo. São homens simples: operários, comerciantes, empregados que deixam o trabalho e acorrem ao fogo mal se ouve o silvo da sirene.

A partir destes elementos tento reconstruir uma humanidade solidária e confiante. Talvez isto continue a ser literatura – a literatura é possivelmente o ópio dos literatos -, mas a verdade é que, por uma razão ou por outra, tudo está cada vez mais destruído, e como aquela encosta da serra, temo que estejamos construindo um mundo de tristeza e desolação.

António Alçada Baptista

O DIA, 27 de Julho 1976

 

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